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O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente: «Boa tarde, senhor doutor».

«Não sou doutor», disse-lhe, e era a verdade. «Porque é que me julga doutor?»

«Ah, eu realmente julgava…», respondeu ele limpidamente.

Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.

«Boa tarde», disse eu para ambos.

Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:

«Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado».

 

Moralidade:

Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do dominio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

 

O burro e as duas margens

 

É costume contar-se às crianças, quando começam a estar em idade de começar a ser estúpidas, uma história a propósito de um burro que chega à margem de um rio e não consegue passar para a outra margem.

O rio não tem ponte, o burro não sabe nadar, não há barco que o transporte. O que faz o burro? Depois de algum tempo de pensar, a criança diz que desiste. E então a pessoa adulta, que lhe pôs a adivinha, diz: O mesmo fez o burro. O que devia dizer era: És como o burro, porque assim é que a graça tem graça, se é que a tem.

Mas a história não se passou assim, e foi o burro mesmo que ma contou. O burro chegou à margem do rio, e queria passar para a outra margem. Verificou, efectivamente, e nesse particular a história é verídica como se narra, que (a) não havia ponte, (b) não havia barco, (c) ele, burro, não sabia nadar.

Então o burro pensou: O que faria um homem no meu caso? E, depois de pensar, pensou: Desistia. Pois bem, decidiu: Sou como o homem.

Porque, nesta adivinha, ninguém pensou numa coisa: é que o homem desistia também.

 

Moralidade:

A política partidária é a arte de dizer a mesma coisa de duas maneiras diferentes. O melhor é dizer em segundo lugar, porque como é o homem que faz a adivinha, adiante vai o burro.

 

O Soares e o Pereira

 

O Soares e o Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma. Não havia questão de serviço, ainda que rigorosamente não pudesse surgir conflito entre os dois, em que não surgisse conflito entre os dois. E, embora nunca seguissem por aquelas vias chamadas de facto, fervia em pouco tempo a descompostura mútua. De besta para cima e para baixo, todos os arredores de malandro, com passagem por gatuno e grande escala por tudo, encontrarem-se era discordarem, olharem-se era a primeira palavra de se descomporem.

Um dia o Soares, que era o mais inteligente e por isso o mais estúpido dos dois, referindo, fora do escritório, a um amigo as cenas habituais com o Pereira, recebeu desse a pergunta: «Mas porque diabo é que tu não o esmagas com uma coisa pior que todas as piadas?» «Que coisa?», perguntou o Soares; «porrada?».

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