Escuso de lhe repetir as razões que levam inevitavelmente a esta conclusão, adentro do anarquismo; já lhas expus e você já as percebeu.
— Sim.
— Essa revolução seria preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os pontos importantes, do mundo; ou, não sendo assim, partindo rápidamente de uns para outros, mas, em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e completa.
«Muito bem. O que poderia eu fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a ela, á revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao país onde estava. O que eu podia era trabalhar, na inteira medida do meu esforço, para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei como: combatendo, por todos os meios acessíveis, as ficções sociais; não estorvando nunca ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem a liberdade futura, nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo possível, qualquer coisa da futura liberdade.
Puxou fumo; fez uma leve pausa; recomeçou.
* * *
— Ora aqui, meu amigo, pus eu a minha lucidez em acção. Trabalhar para o futuro, está bem, pensei eu; trabalhar para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu? Eu não sou ninguém? Se eu fosse cristão, trabalhava alegremente pelo futuro dos outros, porque lá tinha a minha recompensa no céu; mas também, se eu fosse cristáo, não era anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não tinham importância na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e lá seriam compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e perguntava-me: mas por quem é que eu me vou sacrificar nisto tudo? Mais ainda: por que é que eu me vou sacrificar?
«Vieram-me momentos de descrença; e você compreende que era justificada… Sou materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para que hei-de ralar-me com propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida, quem não сrê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao Estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, a todas as ficções sociais porque elas não são naturais, por que carga de água é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário, e portanto exclusivamente egoísta.
«Eu discutí a situação comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens. Mas a ideia de «dever» era natural? De onde é que vinha esta ideia de «dever»? Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que divergía a acção dessa ideia da acção de qualquer ficção social, que produz em nós exactamente o mesmo efeito?
«Esta ideia de dever, isto de solidariedade humana, só podia considerar-se natural se trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em princípio contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre, no fim de contas, o não contrariara. |