No facto mais simples isto se via. Por exemplo: dois rapazes iam juntos por uma rúa fora; chegavam ao fim da rúa, e um tinha que ir para a direita e outro para esquerda; cada um tinha conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro «Venha você comigo por aqui»; o outro respondia, e era verdade: «Homem, não posso; tenho que ir por ali» por esta ou aquela razão… Mas afinal, contra sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a esquerda… Isto era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer assim… Isto é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo… E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes… Você vê bem o caso?
— Vejo. Mas que diabo há de estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural!..
— Será. Já vamos a isso. O que lhe peço que note é que é exactamente o contrário da doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeño, num grupo sem influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão grave ou a decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se passava num grupo de gente que se unirá especialmente para fazer o que pudesse para o finí anarquista — isto é, para combater, tanto quanto possível, as ficções sociais, e criar, tanto quanto possível, a liberdade futura. Você reparou bem nestes dois pontos?
— Reparei.
— Veja agora bem o que isso representa.. Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de positivo e concreto — a criação entre si de tirania. E repare que tirania… Não era uma tirania derivada da acção das ficções sociais, que, embora lamentável, seria desculpável, até certo ponto, aínda que menos em nós, que combatíamos essas ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de todo fugir à sua acção. Mas não era isso. Os que mandavam nos outros, ou os levavam para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da posição social, ou de qualquer autoridade de natureza fictícia, que se arrogassem; faziam-no por uma acção de qualquer espécie fora das ficções sociais. Quer dizer, esta tirania era, relativamente às ficções sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuito sincero não era senão destruir tirania e criar liberdade.
«Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de questões importantes e de decisões de carácter fundamental. Ponha esse grupo a eneaminhar os seus esfonjos, como o nosso, para a formação de uma sociedade livre. E agora diga-me se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas você entrevê qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com uma humanidade digna de si própria…
— Sim: isso é muito curioso…
— É curioso, não é?… E olhe que há pontos secundários também muito curiosos… Por exemplo: a tirania do auxílio…
— A qué?
— A tirania do auxílio. |