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Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do mesmo modo ir contra os princípios anarquistas.

— Essa é boa! Em quê?

— Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supôlo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade.

«Voltemos ao nosso caso… Você vê bem que este ponto era gravíssimo. Vá que trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscandonos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era de mais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo, mais que criar tirania, e não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por nós, os oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto é que não podia ser…

Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a solução. Foi o grande dia das minhas teorías anarquistas: o dia em que descobri, por assim dizer, a técnica do anarquismo.

Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.

— Pensei assim… Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que não é derivada das ficções sociais. Então de onde é ela derivada? Será derivada das qualidades naturais? Se é, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação apenas as qualidades naturais dos homens — aquelas qualidades com que eles nascem, que devem só à Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum —, se uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias, quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa sociedade? Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que sentiríamos uma tirania nova, e com o carácter terrível de todas as coisas tiránicas que são directamente da Natureza — o não haver revolta possível contra ela, como não há revolução contra ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se prefería ter nascido alto. Mesmo eu já lhe provei que, se por qualquer razáo não é realizável a sociedade anarquista, então deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade burguesa.

«Mas seria esta tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das qualidades naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce — isto no campo mental, é claro, porque as qualidades naturais físicas não vém para o caso. Ora um tipo que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais.

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